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A mesa-flausina
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Tinha acabado de chegar, ainda no carro a primeira coisa em que reparámos foram as pernas. Que pernas ela tinha! Longas, esbeltas, perfeitamente proporcionadas. Terminavam no tampo com um elegante encaixe, reforçado por cantos de desenho curvo e ondulante. A madeira era em tola com o tampo em aparite forrado com uma fórmica verde-água.

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Desembaraçada, espevitada e respondona tratava-se evidente, e ostensivamente de uma mesa-flausina dos anos 60. Vinha em conflito com os proprietários que consideravam a possibilidade de lhe mudar o tampo. Também não gostava (nunca tinha gostado!) do lugar de onde vinha, e que lhe estava destinado após o restauro.

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Nós insistimos na opinião de manter o tampo, e lá os convencemos também que ela não era apropriada para rusticidades e ruralidades, de taipa, cal e tijolo-burro. O que queria era estar sobre um bom parqué, num confortável e moderno apartamento urbano, com gente jovem, cosmopolita e igualmente espevitada.

Depois foi apenas tratar a madeira e ter o cuidado de imprimir aquele meio-brilho que tão bem fica sobre a tola.

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Foi com muita pena que a vimos partir, pois foi uma daquelas despedidas em que temos perfeita consciência que serão para sempre. Pode ter sido imaginação nossa mas, já no carro, pareceu-nos que nos sorria, num sorriso de agradecimento, mas também de desculpa pois, desde o início sabia, (e, secretamente, nós também sabíamos!) que não havia sido feita para nós.

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